Imagem responsiva

O adeus a Remo Usai, mestre das trilhas sonoras

Quando a memória de Antonio Remo Usai começou a ratear, depois dos 80 anos, só duas lembranças permaneceram intactas: a de sua mulher, Antonia, de 83 anos, e a do dinheiro que não recebeu pelos direitos autorais de suas músicas. “Compus a trilha sonora de mais de cem filmes e nunca ganhei como deveria”, costumava repetir nos últimos anos de vida aos familiares e amigos que o visitavam em seu velho apartamento no Cosme Velho, Zona Sul do Rio de Janeiro. Embora não tenha alcançado a fama de um Henry Mancini ou de um Ennio Morricone, Usai foi o mais prolífico compositor de trilhas sonoras do cinema brasileiro. Foi também um dos primeiros.

Ele era o filho único de uma família de artistas italianos que migrou da Sardenha para o Brasil na década de 1920. Seu pai, Heitor, arquiteto e escultor especialista em arte sacra, projetou o interior da Igreja Santo Inácio de Loyola, em Botafogo, no Rio de Janeiro. A mãe, Helena, era tradutora e pintava quadros nas horas livres. Estimulado pelos dois, Usai aprendeu a tocar piano aos 7 anos de idade.

Ao terminar o ensino médio, incerto do que faria de sua vida, resolveu estudar engenharia agronômica. Formou-se, mas largou a profissão antes de completar 30 anos: após vender seu jipe, embarcou para os Estados Unidos a fim de estudar o ofício de compositor cinematográfico na Universidade do Sul da Califórnia. Eram meados da década de 1950. Na época, a profissão de compositor de trilha sonora para o cinema inexistia no Brasil – os diretores costumavam recorrer a músicas consagradas. No cinema norte-americano, porém, essa atividade era coisa séria. De volta ao Brasil, como um vendedor de água no deserto do Saara, Remo recebeu encomendas de todos os lados. Desde então, compôs em escala industrial. Entre 1958 e 1959, assinou a trilha de oito longas-metragens. Na década seguinte, foram 48.

Misturando samba e música sinfônica, escreveu os arranjos inovadores de O Assalto ao Trem Pagador (1962), um clássico do cinema brasileiro. Versátil, compôs para dramas – Mandacaru Vermelho (1961), Maria Bonita, Rainha do Cangaço (1968) –, filmes policiais – Crime no Sacopã (1963), O Caso Claudia (1979) – e inúmeras comédias e chanchadas – Entrei de Gaiato (1959), Na Onda do Iê Iê Iê (1966), Os Três Mosqueteiros Trapalhões (1980). Quando a trilha sonora de Boca de Ouro (1963) foi lançada em forma de disco, Nelson Rodrigues – autor do livro que inspirou o filme – escreveu na contracapa do álbum: “O amor e a morte, o idílio e o crime, o jogo e o delírio, os grandes sonhos da carne e da alma – a tudo Remo Usai deu a exata valorização. Não tenhamos dúvidas – a sua trilha sonora é uma obra-prima.”

Em 1965, ano de criação da Rede Globo, Usai foi contratado como diretor musical da emissora. Comandou orquestras e criou vinhetas para programas. Entre um trabalho e outro, escrevia jingles para produtos tão diversos quanto o carro Simca Chambord e as roupas da Ducal. Apesar de tamanha produtividade, nunca enriqueceu. Com a ajuda dos pais, comprou um apartamento no Cosme Velho onde passou a morar com a mulher e os três filhos. Viveu ali a vida toda – os anos de sucesso e os de ostracismo.

“Lembro que, quando criança, eu ia ao cinema com os amiguinhos e ficava reparando na trilha sonora do filme, de tanto ouvir meu avô falar. Eu pensava que todo mundo era assim, então comentava: ‘Viram aquela música, que bonita?’ E eles nem ligavam”, relembra Claudia Usai, neta mais velha do compositor, de quem sempre foi muito próxima. Quando Claudia nasceu, em 1993, Usai já não trabalhava como antigamente. Em meados da década de 1980, o cinema brasileiro entrou em estado de letargia e, com isso, minguou o ganha-pão do compositor. Usai deixou de ser requisitado. Em 1986, ele compôs a trilha de As Novas Aventuras da Turma da Mônica, o último filme de sua carreira.

Na mesma época, Usai teve de se afastar da música para cuidar da saúde do pai e da mãe. Durante alguns anos, se viu obrigado a gerenciar o ateliê de seu pai, que àquela altura fazia chapas de mármore e projetos de mausoléu para o Cemitério São João Batista, em Botafogo. Em 1992, a filha caçula de Usai, Claudia, morreu num acidente de trânsito, o que o tornou ainda mais recluso (o nome de sua neta, que nasceu no ano seguinte, foi uma homenagem a ela). Mais tarde, quando tentou retomar a produção artística, Usai não encontrou o mesmo mercado de antes. “Em poucos anos, meu avô caiu em esquecimento. Nesse meio-tempo, surgiram outros compositores, a crise no cinema continuou, e ele parou de ser chamado”, conta Claudia. “Ele costumava me dizer que se arrependia de não ter ficado nos Estados Unidos…”

Por influência de Usai, Claudia aprendeu a tocar piano ainda criança, cursou música na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e se tornou ela própria compositora de trilhas sonoras. Hoje, prepara uma dissertação de mestrado sobre a vida e a obra do avô. Ela vem se esforçando para catalogar e divulgar as composições de Usai, muitas das quais são totalmente desconhecidas. “Nas faculdades de cinema ninguém conhece meu avô, porque quem faz cinema não costuma pensar em música. E nas faculdades de música também não o conhecem, porque quem faz música não pensa em cinema. Ele ficou preso num limbo eterno”, lamenta a neta.

Em 1983, Remo Usai abriu um processo contra o Ecad, instituição responsável pela arrecadação e distribuição de direitos autorais. Alegou nunca ter sido pago corretamente pela reprodução de suas músicas em salas de cinema. A família conta que, além disso, muitas vezes ele sequer foi pago pelos diretores que o contrataram. O resultado disso foi uma situação financeira frágil.

O litígio contra o Ecad se arrastou por décadas sem chegar a um desfecho e se tornou uma obsessão para Usai, que considerava ter sido injustiçado. A instituição argumentava que, antes da década de 1980, os cinemas não pagavam direitos autorais e, por isso, ele não teria o que receber, já que nem o Ecad havia sido pago. Em 2009, com as cobranças de condomínio atrasadas, a família não viu opção senão vender o piano de Usai – um Yamaha preto, de cauda. Em solidariedade, o compositor Tim Rescala comprou o piano do amigo por 25 mil reais, mas decidiu que o instrumento deveria ficar onde estava. O dinheiro aliviou as contas da casa, mas não o suficiente para a família viver com conforto.

Em 2012, após Remo ter trocado de advogado, o processo começou a andar. Naquele ano, uma perícia judicial concluiu que o Ecad devia 3,5 milhões de reais a ele. Seis anos depois da perícia, o Tribunal de Justiça do Rio finalmente expediu uma decisão determinando o pagamento. Mais três anos se passaram até que, em agosto de 2021, o dinheiro finalmente foi depositado pelo Ecad. Ao todo, o processo durou quase quatro décadas. Usai, que morreu no último dia 9 de fevereiro, aos 93 anos, já estava muito debilitado quando recebeu a boa notícia.

Revista Piaui - Luigi Mazza