Carne seca, preta e morta - Marcos Nogueira FS
A foto que circula nas redes sociais mostra quatro pacotes de carne espalhados pelo chão. Charque de ponta de agulha. Carne-seca. Jabá.
Há também dois homens. Dois homens jovens, dois homens pretos encostados na parede chapiscada, rendidos.
Bruno, 29, e Ian Barros da Silva, 19, eram tio e sobrinho. Foram pegos pela segurança do Atakadão Atakarejo, supermercado em Salvador, acusados de tentar furtar a carne que está no chão.
A pena para o crime de furto, artigo 155 do Código Penal brasileiro, é detenção de um a quatro anos e multa. Quando o objeto furtado tem pouco valor, o juiz pode aliviar ou até mesmo perdoar a pena.
Um quilo de charque custa mais ou menos R$ 50. Toda a carne furtada não vale um smartphone meia-boca.
Fossem brancos de classe média tirando onda de rebeldes, os rapazes seriam dispensados, sem queixa à polícia, depois de um sermão do gerente.
O caso de Bruno e Ian tampouco foi reportado à polícia. A segurança do Atakarejo é acusada de ter acionado uma milícia de justiceiros locais –presumidamente traficantes–, que julgou, condenou e executou os acusados no mesmo dia.
Tio e sobrinho foram encontrados no porta-malas de um carro, mortos com muitos, muitos tiros. A depender da fonte, 30 ou 50 balas de pistola, escopeta e metralhadora. Ainda levaram facadas e tiveram os rostos deformados na sessão de tortura.
Salvador é a capital mais negra do país. Cerca de 80% dos moradores da capital baiana têm origem africana. Bastante provável que os seguranças do Atakarejo também fossem pretos. Que os verdugos milicianos também fossem pretos.
A situação remete à letra de “Haiti”, de Caetano Veloso e Gilberto Gil: ela começa com PMs, “quase todos pretos, dando porrada na nuca de malandros pretos” em Salvador. Os compositores baianos concluem que o Haiti é aqui. Ou não.
A faixa foi lançada em 1993, quando o país mais pobre das Américas, 95% preto, enfrentava sanções internacionais devido a um golpe militar. Um ano qualquer no inferno permanente de miséria e barbárie do Haiti.
Em 2004 –outro ano qualquer de miséria e barbárie–, o Exército Brasileiro desembarcou no Haiti em suposta missão de paz. As tropas verde-oliva vestiram o capacete azul das Nações Unidas, sob o comando do general Augusto Heleno –atual ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional.
A intervenção da ONU no Haiti acabaria em 2017. Passaram por lá várias estrelas do oficialato brasileiro, como os generais Santos Cruz (ex-ministro da Secretaria de Governo) e Edson Pujol (recém-exonerado do Comando do Exército).
Nossos militares deixaram o Haiti sob acusações de violência e abuso de autoridade. Não resolveram nada por lá e trouxeram na mala o modelo de horror haitiano.
Empoleirados no pior governo que este país já teve, os generais chancelam a eternização de um inferno de miséria e barbárie. O caso dos ladrõezinhos de carne-seca, pretos trucidados por outros pretos na Bahia, elimina qualquer dúvida: o Haiti não é aqui, mas é.