Joaquim Cardozo - FS
No alpendre da casa de um antigo sítio
Onde morei por longo tempo – longos trabalhos –
Todas as manhãs eu vinha ver o dia
Que sobre as cajazeiras, longe, amanhecia.
Ao lado, ao alto permaneciam. . . entre-havia
Dois morros de matas virgens coroados.
Na abertura desses montes, sempre aparecia,
Na mesma posição, na mesma hora matutina,
Uma nuvem cor-de-cinza e leve bruma,
Com fímbrias e vestígios cor-de-ouro;
– Uma nuvem ficava entre os dois capões do mato
Por alguns quantos de tempos,
Por alguns modos de sombras temporais.
Uma vez tive a impressão que ela me acenava,
Me fazia, e tanto me fazia, em mímica, sinais:
– Gestos de fuga, de fraga, de fronde e curso d'água –
Símbolos de uma linguagem nova quase toda indecidível;
Não compreendi, a princípio, aquilo, o que nela significava,
Mas senti que eram gestos, e gestos são palavras.
Da formalização dos gestos da Natureza
Pode nascer sempre uma linguagem.
Resolvi subir o morro pela beira do corgo,
Plantado de jaqueiras novinhas.
E fui caminhando até junto da abertura das matas
Onde a formosa nuvem de cinza e ouro
Me aguardava. Perto cheguei.
Como numa só voz os gestos se fundiram,
A mim aderiram, a mim se ajustaram (juntos/disjuntos)
A mim se advinharam,
E enfim disseram em voz nevoenta:
– Estou cansada de ser um vôo,
Um vôo viúvo de uma asa; desejava ter
Comigo a asa. . . uma asa que fugisse, que batesse,
Que vibrasse no ar com um som. . .
– E eu lhe disse: – Por que apenas uma asa?
Podias ter/ser um ramo, um ramo de flores.
Um ramo de folhas verdes e sobreverdes,
Ramo de uma árvore das mais belas desta mata.
– E ela: – Ah! Quem me dera!
Me vestir de amarelo nos dias de Pau D'Arco,
Me vestir de roxas sucupiras nos momentos dos ares tristes.
Quem me dera!
– Voltei a dizer-lhe: – E por que não um animal?
Um animal que exprimisse os atos da asa?
Ou. . . mesmo qualquer um outro do teu agrado?
– Ela: – Sim, seria bom, gostaria de ser uma garça
Que é, só e toda, uma asa. Mas, poderia ser uma ovelha
Pastando o dia todo nos deslizes das colinas
Ou uma novilha já no momento da necessidade
Do amor. Podia ser uma novilha amorosa.
– De súbito me veio a pergunta: – E uma mulher?
Nunca pensaste em ser uma mulher?
Senti que a nuvem, toda em gestos de fraga e curso d'água,
Me transmitiu uma expressão de espanto.
Uma expressão de extrema. . . extrema o quê?
– Perdi o contato com a linha dos seus gestos;
Mas voltei a compreender logo em seguida.
Falou, depois de algum tempo:
– Pensei, sim, pensei muitas vezes
Mas, por fim de tudo pensando, concluí
Que mais valeria possuir de novo a asa:
Mulher deste meu vôo. No meu pensamento,
Ser árvore, ser ovelha, ou ser mulher
Que valem? Todas morreram.
Todas se perderam, todas me. . . esqueceram.
A nuvem se refere a uma anteépoca
Mais remota profunda da sua origem.
Com essas palavras começou a se esconder
Por detrás do morro, sem mesmo um gesto de despedido
[abandono.
– Nuvem de ouro e cinza, se fosses mulher
Eu te chamaria Carolina:
Carolina se chamaram minha mãe e minha irmã.
Ambas, há muito, faleceram,
Mas eu, em ti, as saudaria todas as manhãs.
Com as minhas últimas palavras, a nuvem
Levada pelo vento, já se ocultara,
Como em outros dias, por detrás da mata.
Desci o corgo, pela sua margem de gramíneas,
Ao longo, longo das jaqueiras novinhas;
Voltei a casa, e dessa conversa, e mais de tudo, esqueci.
Tarde da noite daquele dia, um vento forte: um sopro
[frio/forte,
Uma chuva contínua e prolongada
Passaram sobre o telhado; as bátegas bateram
Sobre as telhas, como dedos num teclado.
– O vento soando entre as ripas e os caibros,
Como o ar nos tubos de um órgão. –
Era uma chuva noturna, como muitas outras, e a sua música banal
Cantava no silêncio dos ares campesinos.
– Desperto, escutei toda a sua sinfonia. . .
Notei, porém, que acompanhando o som da chuva, havia
Qualquer coisa de choro e pranto malogrado.
De inundado rumor de mágoa se envolvia,
Em vento e chuva, a casa toda:
Como se fosse objeto de sonho e de magia,
Pelos ares da noite alguém chorava.
Enfim passou a forte chuva, num adeus de aguaceiro
E o silêncio voltou muito limpo e lavado.
Passou. Tudo tornou ao sossego campestre.
– Dormi até o fim da noite.
Na manhã seguinte, como sempre, ao alpendre
Saí, para ver o dia, para ver o dia,
Que sobre as cajazeiras, longe, amanhecia.
Ao lado, ao alto, entre morros, tudo era vazio:
A nuvem cinza e ouro àquele dia amanhecia.
Ao lado, ao alto, entre morros, tudo era vazio:
A nuvem cinza e ouro àquele dia
Não aparecera entre os capões do mato: não. não. não. . . não. . .
Em todas as manhãs seguintes. . . sucessivas. . .
– Nunca/não surgiu, surgiu nunca/jamais
Com gestos de fuga e longo vôo.
– Gestos de fraga, de fronde e curso d'água.
Onde morei por longo tempo – longos trabalhos –
Todas as manhãs eu vinha ver o dia
Que sobre as cajazeiras, longe, amanhecia.
Ao lado, ao alto permaneciam. . . entre-havia
Dois morros de matas virgens coroados.
Na abertura desses montes, sempre aparecia,
Na mesma posição, na mesma hora matutina,
Uma nuvem cor-de-cinza e leve bruma,
Com fímbrias e vestígios cor-de-ouro;
– Uma nuvem ficava entre os dois capões do mato
Por alguns quantos de tempos,
Por alguns modos de sombras temporais.
Uma vez tive a impressão que ela me acenava,
Me fazia, e tanto me fazia, em mímica, sinais:
– Gestos de fuga, de fraga, de fronde e curso d'água –
Símbolos de uma linguagem nova quase toda indecidível;
Não compreendi, a princípio, aquilo, o que nela significava,
Mas senti que eram gestos, e gestos são palavras.
Da formalização dos gestos da Natureza
Pode nascer sempre uma linguagem.
Resolvi subir o morro pela beira do corgo,
Plantado de jaqueiras novinhas.
E fui caminhando até junto da abertura das matas
Onde a formosa nuvem de cinza e ouro
Me aguardava. Perto cheguei.
Como numa só voz os gestos se fundiram,
A mim aderiram, a mim se ajustaram (juntos/disjuntos)
A mim se advinharam,
E enfim disseram em voz nevoenta:
– Estou cansada de ser um vôo,
Um vôo viúvo de uma asa; desejava ter
Comigo a asa. . . uma asa que fugisse, que batesse,
Que vibrasse no ar com um som. . .
– E eu lhe disse: – Por que apenas uma asa?
Podias ter/ser um ramo, um ramo de flores.
Um ramo de folhas verdes e sobreverdes,
Ramo de uma árvore das mais belas desta mata.
– E ela: – Ah! Quem me dera!
Me vestir de amarelo nos dias de Pau D'Arco,
Me vestir de roxas sucupiras nos momentos dos ares tristes.
Quem me dera!
– Voltei a dizer-lhe: – E por que não um animal?
Um animal que exprimisse os atos da asa?
Ou. . . mesmo qualquer um outro do teu agrado?
– Ela: – Sim, seria bom, gostaria de ser uma garça
Que é, só e toda, uma asa. Mas, poderia ser uma ovelha
Pastando o dia todo nos deslizes das colinas
Ou uma novilha já no momento da necessidade
Do amor. Podia ser uma novilha amorosa.
– De súbito me veio a pergunta: – E uma mulher?
Nunca pensaste em ser uma mulher?
Senti que a nuvem, toda em gestos de fraga e curso d'água,
Me transmitiu uma expressão de espanto.
Uma expressão de extrema. . . extrema o quê?
– Perdi o contato com a linha dos seus gestos;
Mas voltei a compreender logo em seguida.
Falou, depois de algum tempo:
– Pensei, sim, pensei muitas vezes
Mas, por fim de tudo pensando, concluí
Que mais valeria possuir de novo a asa:
Mulher deste meu vôo. No meu pensamento,
Ser árvore, ser ovelha, ou ser mulher
Que valem? Todas morreram.
Todas se perderam, todas me. . . esqueceram.
A nuvem se refere a uma anteépoca
Mais remota profunda da sua origem.
Com essas palavras começou a se esconder
Por detrás do morro, sem mesmo um gesto de despedido
[abandono.
– Nuvem de ouro e cinza, se fosses mulher
Eu te chamaria Carolina:
Carolina se chamaram minha mãe e minha irmã.
Ambas, há muito, faleceram,
Mas eu, em ti, as saudaria todas as manhãs.
Com as minhas últimas palavras, a nuvem
Levada pelo vento, já se ocultara,
Como em outros dias, por detrás da mata.
Desci o corgo, pela sua margem de gramíneas,
Ao longo, longo das jaqueiras novinhas;
Voltei a casa, e dessa conversa, e mais de tudo, esqueci.
Tarde da noite daquele dia, um vento forte: um sopro
[frio/forte,
Uma chuva contínua e prolongada
Passaram sobre o telhado; as bátegas bateram
Sobre as telhas, como dedos num teclado.
– O vento soando entre as ripas e os caibros,
Como o ar nos tubos de um órgão. –
Era uma chuva noturna, como muitas outras, e a sua música banal
Cantava no silêncio dos ares campesinos.
– Desperto, escutei toda a sua sinfonia. . .
Notei, porém, que acompanhando o som da chuva, havia
Qualquer coisa de choro e pranto malogrado.
De inundado rumor de mágoa se envolvia,
Em vento e chuva, a casa toda:
Como se fosse objeto de sonho e de magia,
Pelos ares da noite alguém chorava.
Enfim passou a forte chuva, num adeus de aguaceiro
E o silêncio voltou muito limpo e lavado.
Passou. Tudo tornou ao sossego campestre.
– Dormi até o fim da noite.
Na manhã seguinte, como sempre, ao alpendre
Saí, para ver o dia, para ver o dia,
Que sobre as cajazeiras, longe, amanhecia.
Ao lado, ao alto, entre morros, tudo era vazio:
A nuvem cinza e ouro àquele dia amanhecia.
Ao lado, ao alto, entre morros, tudo era vazio:
A nuvem cinza e ouro àquele dia
Não aparecera entre os capões do mato: não. não. não. . . não. . .
Em todas as manhãs seguintes. . . sucessivas. . .
– Nunca/não surgiu, surgiu nunca/jamais
Com gestos de fuga e longo vôo.
– Gestos de fraga, de fronde e curso d'água.