Perdeu, playboy!
Perdeu, playboy!
Não bastava sua crise de consciência: agora havia os pesadelos em que o fã, o blogueiro em ascensão, o assassinava no dia da morte de John Lennon e sentenciava:
- Perdeu, playboy!
Na solidão do camarim vazio, frente ao enorme espelho, perde-se em reflexões. Não iria confessar: tinha perdido uns 50 anos de vida acreditando piamente... Uns dez anos atrás, já não tinha dúvidas: os líderes o tinham traído. No entanto, já era muito tarde para fazer um mea culpa, reconhecer o erro publicamente, romper com os comandantes. Afinal, tinha conceito na literatura e na música, construído em cima de ideias... Não, não iria rasgar a própria biografia, confessar que foi um tolo, que entrou na barca furada, fez parte da massa de manobra. Só podia desabafar com o espelho do camarim:
- Espelho, espelho meu, tem alguém mais ingênuo do que eu? Me diz pelo menos que eram sinceros no começo, me diz!
E, olhos nos própios olhos, os famosos olhos verdes, ainda cultuados pelas mulheres, se recriminava:
- É muito tarde, seu babaca!
E para os que o enganaram:
- Filhos da...
Mas não iria mudar. Era tarde demais, já caminhava para os 75. Sabia que um de seus fãs estava escrevendo sobre sua incoerência. Um fã, blogueiro em ascensão, que o seguia desde o início de sua carreira, um fã que o adorava e ganhava cada vez mais notoriedade. Talvez um dia viesse fazer-lhe pessoalmente a pergunta: por que ainda defende essa gente? Era o personagem de seus pesadelos. O fã matava-o todas as noites, no dia da morte de John Lennon, e repetia:
- Perdeu, playboy!
Os chefes, claramente, tinham traído os princípios e se aboletaram no poder. Será que ele era mais um inocente útil? Essa talvez fosse a razão: um intelectual manipulado por mal intencionados. Não, isso era inadmissível, o orgulho não permitiria. Babaca!
Uns três ou quatro companheiros de batalha, na certa, tiveram a mesma percepção, porém nenhum iria assumir que foi também mais um dos inocentes úteis, mais um dos babacas enganado por um bando de pilantras. Não, não mudariam o rumo, tão teimosos quanto ele. Iriam tocar o barco na mesma direção, manter a coerência a qualquer custo.
Verdade que outros saíram daquele quadradinho logo no início. Perceberam o desvio, assumiram publicamente seu desacordo com os cabeças e tomaram outro caminho. Aí, foram execrados, expulsos, caluniados, afastados de todas as benesses, cargos e comissões. Até um assassinato misterioso de um contestador aconteceu. Conservaram a integridade, pelo menos, assim diziam e assim se consolavam. Mas ele não, não iria confessar, não iria admitir. Seguiria em frente.
Como o espelho do camarim permanecesse em silêncio, com as mãos ajeitou o penteado, piscou os indefectíveis olhos verdes, revisou a maquiagem, já o chamavam no interfone. Era hora de mais um show. O público fiel estava pronto para endeusá-lo mais uma vez. Seguiam sua carreira e não faziam perguntas. Antes assim.
O otimismo permaneceria até ouvir de novo:
- Perdeu, playboy!
Creditos: William Santiago
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