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Alma penada que desce o morro - José Edmar Gomes*

ALMA PENADA QUE DESCE O MORRO

(ou A tragédia deste verão

Alguém assassinou os primos Dudu e Dandara, de 11 e 10 anos; outras 21 crianças e mais 41 pessoas, na noite de 19 de fevereiro de 2023, na bela São Sebastião. Há algo mais em mais esta tragédia anunciada e não são apenas as descomunais chuvas que caíram, naquela madrugada. 

Ainda que o verão no hemisfério sul, agora, cobre preço alto pela delícia do seu calor e pela beleza de suas cores, não há como negar a omissão e a gestão temerária, de quem é eleito e remunerado para administrar as cidades e garantir a vida das pessoas. 

Desde que os homens passaram a agredir a natureza, tudo ficou tão intenso e extraordinário, que o quê não existia passou a existir: a natureza tenta refazer o que está sendo desfeito ou tirar o que foi feito em lugar errado.

Era preciso preservar os altos, deixá-los intactos, como um círculo de preservação às cidades e não construir casebres no alto de morros que, depois, viram armadilhas, caminhos que viram grotas e precipitam as águas raivosas das chuvas da vingança, que um dia cobram as feridas perpetradas contra a pele da terra, de si, já tão ferida nos seus brios de mãe acolhedora.

Os viventes que sobem e descem montanhas para ter direito de descortinar a imagem do seu “lar”, receber o abraço dos filhos e o beijo da mulher resignada, têm o coração sempre apertado:

- Um dia a casa cai! 

E com ela, descem, morro abaixo, os sonhos mais ordinários; os desejos mais pueris:

- Queria uma gaiola com um canário do reino azul, bem ali. Mas o gato do vizinho é glutão e os ratos também comem passarinho. Sabia?

As crianças já não sonham mais assim. Elas têm que descer e subir o morro para ir à escola. Os meninos e meninas da escola são refratários aos demais... e a escola também é um perigo. O sujeito ou sujeitos que permitem que pessoas façam suas casas no alto dos morros moram em algum palácio, assim como se fossem dignos de sua morada. 

Mas não são. 

Eles são sádicos e parecem que dão gargalhadas, quando o céu fica negro de nuvens sinistras.

 Os pais das crianças que morreram em São Sebastião, em Nova Friburgo, em Petrópolis, no Recife, na Bahia... neste e em verões passados, nunca puderam construir para si e para suas famílias uma casinha decente, que resistisse ao sopro dos ventos e ao vômito venenoso da lama das encostas. Nenhuma casa resistiria... Ali não é lugar pra gente morar.

Eles gastam todo o seu tempo de vida para ganhar pouco, construindo belas casas, em belos bairros. Belas casas, onde moram prefeitos, vereadores, governadores, juízes (juízes?) e outros causadores de dores coletivas.

Esses pais trabalham o dia inteiro e, à tarde, estão cansados e deprimidos. Sobem o morro, com o dia morrendo, quando tudo fica triste e impossível. Então eles entram no bar de almas penadas, bebem uma bebida ruim e cospem sua desgraça no chão miserável.

Olham para o morro e seguem a estradinha esburacada, onde os cachorros fazem cocô. Os cachorros são impertinentes, latem as almas penadas dos homens mortos, que gostariam de matar os cachorros irritantes, mas almas mortas não podem matar... nem morrer. 

Eles continuam seu caminho e veem os raios de sol amarelo fugindo do morro escuro. Lembram que sua mulher deve estar preparando o macarrão amarelo, com um ovo cozinho, para o jantar. Sua mulher não fala há vários dias. Ele também não fala com ela...

Falar o quê?

Mas o homem de alma morta sorri com sua boca torta, quando seus filhos correm para ele e agarram suas pernas secas. O homem então conta mentiras que levam seus filhos a sonharem. Os filhos do homem aprenderam a sonhar e esperam. Espera pela mentira de amanhã... e sonham.

Amanhã, talvez, chova. A chuva pode ser terrível e eles morram todos, tragados pelo lama que desce pela estradinha que virou um rio de águas pesadas e grudentas.

Quem matou os filhos do homem de alma penada e sua mulher foram os homens vistosos, que nunca precisaram mentir para seus filhos. Esses homens moram em casas lindas, enquanto os homens de alma penada penduram os sonhos dos seus filhos nalgum prego enferrujado, atrás da porta da casinha simples e esperam o morro derreter.

O homem de alma penada não morre, mas é obrigado a ver todo mundo morrer. 

 

José Edmar Gomes é jornalista em Sobradinho-DF*